Aqui
na cidade de Hamelin, muitos anos atrás, ocorreu uma infestação de ratos. Os
roedores eram imensos e atacavam tudo que havia na cidade. A peste negra também
já se disseminava como um perigoso câncer e açoitava a população severamente. O
trigo e a comida estavam quase sempre contaminados, quando não eram quase
totalmente devorados pelos monstrinhos negros antes do povo. Roupas, paredes,
comida: nada escapava dessas criaturas malditas. Bruxas foram queimadas e, no
entanto, nada obstava a proliferação das criaturas imundas.
Quase
metade da cidade já havia sido arrebatada pelas garras da morte, que por vezes
se confundiam com as miúdas e perfurantes garras dos ratos.
Até
que aquele homem chegou. Era alto, calvo e sua pele era negra, o que assustou
alguns dos moradores que desconheciam os povos do sul distante. Seus trajes
eram similares aos dos monges franciscanos, e ele usava uma faixa de pano
rasgado que lhe cobria os olhos. Disse que era cego, e sempre mantinha a cabeça
coberta pelo capuz, mas caminhava como um homem que vê perfeitamente bem.
Deu-nos esperança e nós o aceitamos. Algumas velhas da cidade disseram que ele
era mau agouro, mas nós as ignoramos como as crianças levadas ignoram os avisos
da mãe acolhedora quando um perverso estranho oferece tentadoras doçuras.
Chamavam-no de Foras.
Ele
disse que seu preço era de mil florins. Como alcaide, eu disse que se ele
realmente conseguisse tirar os ratos da cidade, teria cinqüenta mil florins.
Esse disparate foi causado pela consternação e prostração de ver meu filho mais
velho padecendo, com enormes linfonodos, muita febre, tosse incansável e muita
dificuldade de respirar. Parecia uma pneumonia que se alimentava dele, ficando
cada dia mais forte à medida que consumia as energias de meu filho. E isso fez com
que eu cometesse um erro terrível.
Na
noite seguinte, Foras apareceu com uma flauta. Eu ri dele, e achando que aquilo
fosse uma tremenda loucura, dupliquei minha oferta, cético quanto às
capacidades do homem.
Ele
sorriu do meu escárnio, malicioso, como se a piada não fosse sobre ele, e sim
sobre outro alguém que fosse atrapalhado e risível. Esse alguém era eu.
Durante
a noite, ele pegou sua flauta e pô-la a murmurar uma doce canção, que era
carregada pelo vento e ecoava em todas as ruas da cidade. Um ritmo arrastado e
hipnótico, que causou comoção em toda a população.
Os
ratos começaram a aparecer. Saíam de suas tocas, interrompiam suas refeições.
Um por um todos os ratos apareceram e circundaram o flautista, sem tocá-lo.
Abriram um caminho que dava para o rio. E Foras seguiu pelo caminho aberto,
dançando sua melodia triste e amargurada.
O
mais absurdo é que, apesar de tocar somente uma flauta, era possível ouvir
dezenas de instrumentos que o acompanhavam: liras, flautins, clarinetas,
fagotes, oboés, violinos, violoncelos, contrabaixos, pianos, violões, violas,
harpas, cítaras, tímpanos, surdos, bumbos, pratos, xilofones, carrilhões e
muitos outros sons que eu desconhecia. Entretanto, todos estavam tão perplexos
com a cena (ou talvez hipnotizados também) que não reparamos nesse
contrassenso. Até mesmo um coral ensurdecedor podia ser ouvido, cantando em uma
língua desconhecida, provavelmente arcaica. Podia-se distinguir tenores,
barítonos, baixos, contraltos e sopranos.
A
melodia era densa e contagiante.
Não podia
acreditar quando os ratos saíram da cidade e se atiraram no rio.
Todos
os ratos morreram afogados pela música sobrenatural de Foras.
Só
depois que ele parou de tocar, quando voltei à realidade, que percebi que não
poderia pagá-lo os cem mil florins que havia prometido. Não tinha todo esse
dinheiro disponível.
Além
disso, comecei a concordar que ele devia ser um bruxo.
Na
hora do acerto de contas, paguei a ele somente os mil florins que ele cobrara
da primeira vez que nos vimos.
-
Não foi isso que combinamos, Sr. Alcaide. – disse ele, com sua voz grave.
-
Mas foi isso que você cobrou e é isso que terá. Seja um homem humilde e aceite.
Podia
jurar que vi algo brilhando dentro da escuridão de seu capuz, atrás da venda
dos olhos. Assustei-me. Meu filho então, milagrosamente curado, veio agradecer
o homem.
-
Curei seu filho também e você me nega os cem mil florins combinados
previamente?
-
Deus curou meu filho!
Foras,
que estava com os braços cruzados, descruzou-os como se preparasse para me
atacar. Seus olhos brilharam mais uma vez por trás da venda. Percebi que esse
homem era um demônio, então, e vociferei:
-
Saia daqui, criatura imunda! Pegue seu dinheiro e saia já da minha cidade!
Foras
ficou ali parado, naquela posição.
Sua
boca então fez um esboço de sorriso, que se manteve por alguns segundos.
O
esboço tornou-se um sorriso completo.
Seus
dentes brancos e perfeitos surgiram por trás dos lábios no segundo seguinte.
Uma
risada sutil e grave emanou do estranho músico.
E a
risada evoluiu para uma gargalhada sinistra.
-
Fique com seu dinheiro. Eu terei algo melhor de vocês.
Virou-se
e atravessou os portões da cidade, gargalhando.
Decidi
chamar a Santa Inquisição para queimarem o maldito. Só então me dei conta de
quão estranho é um homem conseguir matar os ratos de uma cidade inteira. Só podia ser
um demônio, ou alguém possuído por um. Eu tinha conhecimento de que havia povos
de pele escura ao sul que faziam ritos ao demônio.
Sabia
que ele residia numa caverna na floresta, e certificar-me-ia de que aquele
monstro estaria queimado no dia seguinte.
Entretanto,
ele teve sua vingança na mesma noite.
Ele
tocou sua música, e enfeitiçou os guardas dos portões da cidade como o fogo
bruxuleante enfeitiça o pirômano, e eles abriram a cidade a ele. Foi como abrir
as portas do galinheiro para a raposa.
Ele
tocou uma canção infantil e alegre em sua flauta acompanhada dos instrumentos
invisíveis, com uma melodia que ainda posso ouvir se me concentrar. Um embalo
saltitante. Lembro de ter visto meu filho se despedindo, saindo pela porta da
frente, pulando ao ritmo da música. Acenei para ele e fui deitar. Não pude
impedi-lo, pois também estava enfeitiçado. Logo em seguida fui dormir, juntamente
com toda a população adulta da cidade.
Acordei
no dia seguinte e procurei meu primogênito, e não o encontrei, assim como não
encontrei nenhum de meus filhos e filhas.
Ao
sair de minha casa e encontrar minha cidade num verdadeiro pandemônio, onde
mães e pais chamavam seus filhos, berrando a plenos pulmões pelas ruas da
cidade, percebi que Foras havia levado aquilo que mais nos era caro: nossas
crianças.
As
pessoas choravam desesperadamente. Todos haviam se despedido de seus
descendentes sem perceber, estavam todos hipnotizados. As crianças saíram
saltitando felizmente pela porta da frente, e ninguém fez nada. Os bebês que
não podiam andar foram carregadas no colo pelas outras crianças. Alguns já
clamavam pela morte do flautista. Outros espancavam os guardas dos portões. Um
deles já havia sido linchado.
Então,
reuni os homens da cidade e fomos até a caverna da floresta.
Lá,
fomos atacados por dezenas de morcegos, mas nada encontramos. Estava deserta.
Tudo o que o flautista nos deixou foi algumas inscrições em uma língua que
desconhecíamos.
Alguns
homens também desapareceram na caverna.
A
tristeza se abateu sobre Hamelin, e por muitos anos nada se soube sobre as
crianças desaparecidas. Muitos pais e mães morreram de desgosto.
Porém,
vários anos depois, quando as últimas esperanças já haviam recebido seu
réquiem, algumas crianças voltaram.
Já
estavam todos crescidos. Três meninas e quatro meninos.
Mas
não eram os mesmos. O flautista tinha feito alguma coisa a eles.
Tinham
os olhos tristes e soturnos. Olhos vazios, como se suas almas tivessem sido
roubadas. Não sorriam, não choravam.
Quando
lhes perguntamos o que acontecera em todo aquele tempo que estiveram sob o jugo
do flautista, eles começavam a gritar desesperadamente, como se o simples fato
de relembrar os levasse de volta a um mundo de horrores e sofrimento.
Infelizmente,
não foi possível reintegrá-los à cidade. Em pouco tempo, assassinatos, furtos e
estupros levaram todos os sete a um fim trágico.
E
quando o último deles veio a falecer, a cidade voltou a ter problemas com
ratos.
Por
Ricardo de Goes Correia
Texto
extraído de
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